17 de março de 2011

RISO
















Era os olhos dela que tinham tudo. Os olhos dela...eram poderosos. Quando podia, manuseava com charme o cigarro, encostada na porta: no lugar onde todos veriam seu poder. Quando eu passava, me olhava, mas ela não só me olhava. Ela me desnudava. Enxergava minha alma, meus pensamentos, e todo o mais que se achava no direito – concedido, sem querer, por mim. Por algum tempo fui dominado, e sem saber o que fazer, eu sorria; até ali. Eu bebia com amigos no bar de sempre, quando ela convocou-me a ir para a rua, alegando que precisava conversar. Incapaz de negar-lhe qualquer coisa, uma parte de meu cérebro já avisava minhas pernas a me levantarem; quando uma outra, perspicaz, me segurou. Foi então que eu decidi: hoje é meu dia, e essa é a minha vez. Planejando cuidadosamente o tom em que as palavras seriam sopradas, disse-lhe que logo iria, e que me esperasse lá fora. Conversei banalidades com o grupo de firulas ao meu redor, fiz ela pensar que talvez eu não me importasse tanto, olhei no relógio. Dez minutos era um bom tempo. Saí do recinto sorrindo tão abertamente a ponto de, provavelmente, irritar os menos tolerantes. Sorri para seu nariz adunco de espera nervosa. Estava me despindo daquele jeito absurdo e quase me entreguei. Mas como eu lhe havia dito, aquela era minha vez e agora eu seria só o amigo misterioso. Havia uma cadeira. Uma mesa. Ao lado, pendendo de braços fechados a despreocupação fingida. Joguei-me na cadeira da forma mais indiferente de que eu seria capaz. Joguei os braços , e em seguidas os dedos e toda minha alma falsamente segura por cima da propaganda de cerveja. Meu descaso em formato de um desses aparelhos móveis deixei deslizar por ali também, até que escorressem para dentro dos meus olhos.
— Você queria conversar. Aqui estou. Diga. - Ainda rindo, meio boçal, como quem diz: por que tão tensa? E então eu vi. Ela ainda me escaneava, mas seu nariz e seus lábios se contorceram levemente para um lado menos prepotente, quase indefeso. Ninguém teria visto, mas naquele dia, quis vê-los exatamente assim: indefesos. Dessa vez, finalmente, amedrontada ela me questionou. Olhei nos olhinhos agora pequenos de medo dela, e perguntei de volta se aquilo lhe faria diferença. Uma dessas respostas que se sabe indigna. Ela disse sim. Afinal, havia outra coisa que dizer? “Talvez, um dia, eu tenha feito isso sim”, ouvi as palavras saindo como um vento forte dos meus lábios, destruindo sua compostura. Ela: “Há quanto tempo?”. Eu: “Um tempo distante, distante o suficiente a ponto de tal informação não importar.” Olhei o relógio, mas não vi as horas:ele não me disse nada. E pra ocupar aquele silêncio vazio encerrei avisando que precisava ir. Levantei, parei. Fiquei a cinco centímetros de seu corpo. Por isso parei. Parei pra sentir. Eu havia conseguido. Eu estava maior que ela. Física e emocionalmente, eu venci e agora ela sabia.
Me olhou enquanto eu me retirava. Tentou novamente: “não vai mesmo me dizer, não é?!”.
De mãos dadas com minha auto-estima lhe respondi bem do meio da minha conquista, quase alto demais:

— Você parece boa em adivinhações.



E sumiu de si. Foi assim. "Vitória" pensou. Agora, ele era só o amigo misterioso.
Noites depois, encontraram-se como sempre se encontravam. Mas então ele já estava decidido. Chamou-a para dançar. Colou-se nela como um bueiro agarrado ao concreto encardido. A sedução foi convidada a bailar, e permaneceu no meio de seus umbigos, balançando daqui pra lá, descendo para os seus pés, e misturando-se em seus entrelaçares de pernas. Se dilatando.
Nesse ponto, ele sabia, era a hora certa. Afastou-se levemente, cada vez mais, aos poucos. Abaixara a cabeça como que deixando-a cair no ar,e riu com o seu corpo todo, deliberadamente.
E, finalmente, quando o olhar dela passou do divertimento, chegando direto na linha de chegada da completa frustração pela risada inexplicada fingiu tornar-se mais sóbrio.

— Desculpe, desculpe... – tosse de risada – é que você fez uma cara que, eu sei lá, parecia...Deixa. Desculpa, desculpa mesmo. Não pude me conter.

Virou de costas, arfando pelo exercício anterior, e fingiu-se desmaiar, abrindo-se no chão, olhando pro nada do teto. Sem falar nada. Sentiu-se observado, como um ratinho de laboratório, cujo cientista tenta entender por que o experimento dera errado. Pois dera. Agora finalmente conquistara-a; não dava trinta minutos para que ela tentasse beijá-lo e e pedir desculpas por tanto tê-lo rejeitado. Ela deitou-se ao lado dele. Também calada, e ficaram observando o nada. Demorou algum tempo até que quase esquecesse de tudo. Segurou sua mão com delicadeza. E quando estava prestes a estragar tudo, conseguiu dizer:

— Obrigado. Você é o “melhor amigo” que eu poderia ter. - e usando o velho truque do relógio terminou - Preciso ir andando.

Beijou-lhe a face suada, cansada, e confusa. “Tchau, até amanhã. Vê se não vai ficar em casa feito um fracassado de novo! Afinal, hoje é sábado, e você ainda não deve ter cumprido a meta.”. Foram suas palavras. Ela saiu sorridente. Mudou de nome, emprego, e país como tantas vezes antes havia feito, e anotou na agenda: fim. Quando foi que ele achou que aquele disfarce todo daria certo? Eram onze horas; ele prostrado, vendo-a partir. Ela buscava uma nova identidade; ele, uma nova explicação.

3 de março de 2011

PROSPECTO


















A gente joga damas. Quantas vezes você já me perguntou se está tudo bem desde a hora em que soube que não estava? A gente deita de conchinha e eu adoro. Te peço pra ficar de costas que eu te abraço: premeditado. Eu quero é vomitar minha dor com todos os temperos amargos. Mas choro. Vejo sua respiração calma e sensata, digna de quem dorme um sono tranquilo. Eu te amo, e isso é certo, mas não sei mais o que fazer com essa coisa de depois. Penso no que falar, e sinto mais vontade de dizer: "Vê bem o que cê tá perdendo hem...", mas essa prepotência regular e estável nada tem a ver com minha intempestividade. "Eu tô aqui, toda tua e você parecendo querer que eu me vá logo" seria mais compatível com meu estado de destruidora de plenitudes alheias. E então, nesse trâmite todo de ilegalidades incontidas, cometeria mais uma: repetir e implorar. Mas...que isso, a que ponto chegamos. Daú eu simplesmente soube: você iria mesmo. E teve a coragem de me deixar saber assim, sem exclamação nem suspiro preparatório. E então você me pergunta se eu entendo. A respsta é tão óbvia que chega a doer os ouvidos; eu respiro fundo, e digo que sim. Engulo meu palavrão que desce indigestivamente por não ter ferido sua compostura, temperado por uma mistura azeda de vazio, mágoa, raiva, e rejeição: e eu? Faço o que com o melhor que separei pra gente? Com os planos? Só faltou mesmo chegar o Chico cantando: "...levou os meus planos, meus pobres enganos, os meus vinte anos" pra completar a marcha fúnebre que se instalou em mim. E eu? O que digo pra mim? Pra minha consciência mentecapta, negra, e obsessiva te transpirando e tendo você por perto o tempo todo? O que digo eu pras minhas perguntas latentes, irritantes, cansativas, cheias de pulgas de você, que ficam aqui, puxando cada fio dos meus cabelos como se fossem fios daquela blusa de lã velha que depois de puxados uma única vez, se destroem por inteiro? Que ficam aqui, desagradáveis e sem nenhum senso de diplomacia dizendo: "E então? Por que ele preferiu ir?", "Por que ele sempre faz isso?" ou "O que ele quer de você afinal?". E então você pensa na coragem de dizer não. E pra variar o óbvio, você diz. Ironicamente seca as lágrimas que causou e eu não reclamo: fazer mais o quê? Mas é que antes você só limpava. E ainda não sei lidar muito com o fato de causá-las. Mas o que é isso agora, menina? Você que sempre manteve a pose de sujeito ativo, agora ta aí, nem passiva, nem reflexiva, perdida no limbo estranho que separa tudo da gente. Fico com a sensação de que me conformo e desculpo mas que na outra lateral desse campo de batalha instaneamente preparado por nós nem quero imaginar as consequencias e me isento desde já sobre todas as culpas: o resto é por sua conta e risco; minha parte eu já indendiei.
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