22 de agosto de 2010

VITRINE

(bicho-commoditie)


Shopping. Compro o que tinha a comprar. Subo à praça de alimentação. E então
recordo com certo pesar: é quarta-feira. Quase em desespero reviro a bolsa atrás da agenda, e uma linha fina de esperança ainda me mantém razoavelmente tranqüila. Como quando a gente cola pela primeira (e normalmente última) vez, sabe que o professor viu tudo, mas prefere acreditar que ele não viu nada. E como (normalmente) acontece o professor vê, e a esperança toda se esvai.
Entretanto, mesmo com a praticamente dolorosa constatação, ajo com “trade-off” e
anuncio meio que escandalosamente para o lado misantropo de minha consciência: resolvo me aventurar. E então, apesar do alvoroço infiltro-me no caos de barulho e cor. Peço uma vitamina, e importante ressaltar que não foi fácil: minha voz tornava-se apenas um infame nanômetro dentro de longínquas ondas sonoras, que sem dúvida eram maiores que eu.
Quatro da tarde e apesar do esforço em me concentrar na leitura do livro que
carregava, meu instinto de curiosidade humana apossou-se com brutalidade de todas as letras e pensamentos que eu poderia ter. Levantei os olhos devagar. Meio com medo; meio como se a balbúrdia tivesse o incrível potencial de me cegar. E o que eu vi, afinal? O que eu vi, deve estar me questionando o leitor. Vi uma multidão de commodities humanos. Populações inteiras de tênis coloridos, espécimes nada raras de logotipos de grandes grifes – maiores que suas próprias almas, entregues a preço de banana por nomes criados por pessoas de duas pernas e dois olhos, exatamente como, veja só que incrível coincidência: todos nós. Piercings, gestos, sorrisos, atitudes. Caricaturas (que aliás mais coloridas do que nunca) de adultos. Todos, sem perceber, exonerados dentro de seu próprio ser; no meio de muitos corpos e corações, mas sós. Perpetrados em sua função de agir conforme, escondendo suas essências num lugar tão escondido de suas existências que mesmo que quisessem resgatá-la desistiriam antes do meio. Meninas de treze vestindo-se como suas irmãs de vinte e um, correndo perna-de-pau num trâmite nervoso de exigências individuais para conseguir atenção; falando alto, cheias de charme forçado, esquisitas sem perceber. Laços, chinelos, blusa, e short fluorescentes: tudo junto, de preferência, afinal, é moda. E meninos. Meninos com pose de mau, cara de mau, jeito de mau: pobres meninos. Pra que tanto esforço? Ser simpático é brega. E mesmo um mínimo de cavalheirismo, cafona. Bonés levantados para aparentar desleixo. Arte de quem quer poder sem saber ter. Cabelos louros, compridos, ruivos, curtos, cacheados ou escorridos. Mas antes de qualquer coisa: artificiais. Padronizando-se no mesmo “in” de ser diferente, ficam no fim todos, exatamente, iguais. Que “out”. Apertos de mão do tipo “eu-assisto-a-novela-das-cinco-e-meia”, “mano”s, “velho”, “galo”, “bicho”s. Bichos. Sim: Animais aprisionados, tão bem adestrados a ponto de não enxergar as grades. Ou, nos piores casos, num nível desesperativo tão grande a ponto de se conformarem com elas, afinal, a ignorância em algum ponto não é a pior doença do universo para os iguais. Na verdade, pra que melhor que a síndrome de ignorância pra ser feliz? A filosofia oriental de não ver, não ouvir, e não falar nenhum mal, invertida: vêem coisas que não prestam, ouvem aquilo que não prestam, e conseqüentemente falam e o que não presta. Existem ainda aqueles poucos que hesitam entre o desconhecido e amedrontador limiar da autenticidade, pelo medo de terem rejeitadas suas verdades, ainda mais imaculados no seu silencioso e discreto sofrimento existencialista, exalando seus tristes e mal-cheirosos gritos presos de dor. E no meio da algazarra dos selvagens aprisionados, sete, eu contei. Os descamisados de classe social, sobrenome, ou moda; mas vestidos da melhor coisa com a qual se pode vestir: aquela alma leve de quem sabe ser, e a liberdade de quem simplesmente não liga. E aí, quem é normal? Depois de tudo que se lê, vê e ouve, chego a conclusão de que é muito fácil defender-se da loucura sendo normal. E eu, justo eu, que sempre a defendi, hoje estou aqui, analisando essa nova modalidade. Porque, loucura, pensando bem direitinho é muito mais aprisionar-se, sorrir, ser educado sempre acima de si do que deixar-se enlouquecer-se. Loucura é muito mais negar-se humano, que permitir-se. Loucura é muito mais ser original não sendo, que forçar-se a ser. E no fim, prefiro o “clean”.

Um comentário:

Obrigada pela sua visita! Volte sempre para tomar um chá neste espaço de aluguel, e mais do que tudo: completamente seu.

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