24 de outubro de 2013

ZAFONICES

(...) Eu sempre tive medo de que, com o passar dos anos, você contrairia uma parte de seu pai que o tornava, de alguma maneira, menos vivo. Embora eu não soubesse definir, entender com clareza, ou separar o que era quem, eu tinha certeza que não queria para você aquilo que sempre me preocupou nele. Essa preocupação, no entanto, foi pouco a pouco sendo dizimada pelo tempo, conforme eu ia observando seu modo cada vez mais seu de ser no mundo. Uma capacidade de sorrir sem peso, e de ser feliz sem culpa. Claro que a apreensão do constante atrito de vocês me angustiava, mas sempre preferi acreditar que se degladiar tanto com ele era seu modo passivo e seguro de não querer sua visão de mundo. De negar-se áquilo que você também devia ver nos olhos dele. Embora ainda alguns resquícios dele se sobresaíssem em algumas das suas atitudes, eu não tinha dimensão do quanto aquilo que o assombrava ainda era um risco para nós. Quando ele se foi, porém, foi como se uma espécie de castelo feliz que você vinha construindo para você não fizesse mais sentido. Ele partiu, e você? Ia construir uma fortaleza para se proteger de que agora? Instintivamente você buscou recriá-lo dentro de você, para que a dor, a saudade, e a necessidade de sentimento de orgulho dele para você - que eu sei que sempre reinou no seu coração - fossem acarinhadas com um pouco menos de brutalidade do que aquele toque abrupto que a vida decidiu nos oferecer sem cuidado ou respostas. Da mesma forma que ele, quando seu pai partiu, um pedaço bem maior do que você esperava foi junto. Não foi só ele, e as lembranças, e o vínculo. Foi mais do que a metade da sua própria identidade. Você se espelhava nele e, de repente, o vidro estilhaçou-se. Você ficou sem brilho, e sem reflexo. Então você buscou o que existia de mais marcante e resgatou com mais força do que a natureza do tempo exigiria depois. Aquela dureza no modo de enxergar a vida - que mesmo ele só adquiriu depois de muitos anos, aprendizados, frustrações e perdas - recaiu sobre você disfarçado de um terrível senso de realidade. Como uma pedra, impedindo todos os vôos das folhas que, com o tempo, em conjunto, formariam sua história.

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